Olá, gente!
Primeiramente, peço perdão pelo atraso do texto. Aviso que tentarei manter uma regularidade pelo menos mensal, pois percebi que não darei conta de escrever semanalmente.
Hoje daremos continuidade às reflexões literárias iniciadas
na útima postagem.
Começaremos a partir de agora a discutir sobre aquilo denominei, em nosso primeiro encontro, de potencia poética.
Penso que a melhor maneira de começarmos alguma discussão é
sempre deixar o mais claro possível o objeto ao qual vamos nos debruçar.
Nosso objeto não é nada palpável, por isso, para ficar
clara, a noção depende de muita delimitação. Vamos começar pelo mais simples
possível e, depois, vamos nos aprofundando.
Em primeira instância, o objeto de estudo de qualquer
artista da palavra é esse conjunto sons e regras a que chamamos língua. É a
língua que fornece o conjunto de contornos - os nomes - às ideias, aos
sentimentos e às coisas e, portanto, a possibilidade de expressar e entender o
que está sendo expresso por outrem. Cada língua existente no planeta é fruto da
observação do mundo através de uma determinada cultura, isso dá a cada idioma
um conjunto único de sentidos que possibilita ao artista da palavra que
trabalhe de infinitas formas dentro do que a língua que fala o permite fazer.
Essa noção básica é realmente importante para os artistas da
palavra por conta da impressão de estranheza que se pode obter de coisas
simples. Conhecer o sentido das palavras e saber como eles operam em seu senso
habitual nos dá a possibilidade de utilizar a língua de forma que não seja a
esperada. A essa possibilidade chama-se, em nossa língua, de Função Poética.
Como função poética se define o uso da língua de forma pouco
convencional, lúdica e/ou imagética que não seja de natureza informativa
(notícias, reportagens, textos didáticos, etc.) ou apelativa (anúncios, ordens,
convites). Apesar disto, a função poética não se restringe apenas a textos artísticos,
podendo estar presente em qualquer tipo de texto em maior ou menor carga, assim
como as outras funções também podem ser encontradas em ambientes artísticos.
Fica mais fácil assimilar se considerarmos a língua como uma máquina com várias chaves que podem ser ligadas em diferentes combinações e intensidades afim de produzir um único texto.
Comparar a língua a uma máquina é um uso da função poética usada para exemplificar uma situação dentro de um texto didático, logo é correto pensar que a função pode ser usada para ilustração didática.
No entanto, e isso é preciso que fique claro, a potência poética que cá estou introduzindo NÃO é a função poética da língua portuguesa, MAS, o conjunto de fatores que podem ampliar ou diminuir os sentidos da língua em textos predominantemente artísticos, ou, valendo-me da analogia maquinário acima, os mecanismos internos que possibilitam a existência, o acionamento e a regulagem da chave da função poética.
Fica mais fácil assimilar se considerarmos a língua como uma máquina com várias chaves que podem ser ligadas em diferentes combinações e intensidades afim de produzir um único texto.
Comparar a língua a uma máquina é um uso da função poética usada para exemplificar uma situação dentro de um texto didático, logo é correto pensar que a função pode ser usada para ilustração didática.
No entanto, e isso é preciso que fique claro, a potência poética que cá estou introduzindo NÃO é a função poética da língua portuguesa, MAS, o conjunto de fatores que podem ampliar ou diminuir os sentidos da língua em textos predominantemente artísticos, ou, valendo-me da analogia maquinário acima, os mecanismos internos que possibilitam a existência, o acionamento e a regulagem da chave da função poética.
Estes mecanismos tendem a ser muito simples de se criar quando se conhece sentidos básicos da língua. Não é necessário, como já disse, dominar um imenso vocabulário para ser um ótimo artista da palavra, basta dominar os mecanismos que regem a arte. Obviamente, quanto mais palavras você tiver disposição maior vai ser a sua gama de mecanismos a serem usados, no entanto, esses mecanismos oriundos da vastidão de palavras são como aplicativos extras para celulares, deixando o aparelho mais equipado e, portanto, abrangendo uma variedade maior de situações, mas se um celular não tiver como entrar em contato com outra pessoa, mandar mensagens, tirar fotos, fazer vídeos e se localizar, será que vale a pena o investimento para adquiri-lo?
Com um texto é a mesma coisa, SE NÃO HOUVER UM DETERMINADO GRUPO DE FATORES BÁSICOS, NÃO HAVERÁ INTERESSE NA LEITURA, SOBRETUDO EM SE TRATANDO DE UM TEXTO ARTÍSTICO.
Com um texto é a mesma coisa, SE NÃO HOUVER UM DETERMINADO GRUPO DE FATORES BÁSICOS, NÃO HAVERÁ INTERESSE NA LEITURA, SOBRETUDO EM SE TRATANDO DE UM TEXTO ARTÍSTICO.
Um exemplo do que estou dizendo: “A borboleta flutuava no
turbilhão da noite”. Na frase/verso, as imagens que provocam o impacto são
baseadas em contraposição de sentidos; a essa contraposição se chama paradoxo
e é uma das figuras de linguagem mais encontradas na literatura de língua
portuguesa, pois é relativamente fácil de se construir e, desde que bem usada,
ajuda grandemente no processo de alcançar a tal potência poética. Mais adiante
em minhas reflexões literárias, abordarei mais profundamente os usos e as
operações dos paradoxos, bem como outras figuras de linguagem. Por ora, vamos
nos concentrar na simplicidade da razão pela qual a frase em questão ficou tão
profunda que nos faz parar para imaginar possíveis continuidades ou tentar
desvelar sentidos escondidos.
O segredo está justamente no lugar mais óbvio que poderia estar,
isto é, no senso habitual que a língua oferece para cada palavra,
individualmente, quando colocado em um contexto que desafia o leitor a fazer uma
leitura investigativa. Explico palavra por palavra, para que fique o mais
didático possível.
Em nosso idioma, o português, a palavra “borboleta” remete a
um inseto com grandes asas coloridas em formato singular, de voo característico
e hábitos diurnos, sendo metaforicamente associada a uma transformação positiva
e bonita; espécies noturnas similares são popularmente conhecidas como
“mariposas” e, além do período de atividade, se diferem das primeiras pelo
formato das asas e pelo habito de voar ao redor de luzes, sua conotação comum
para nós, falantes do português, é alguém, geralmente do gênero feminino que passa pelo "submundo" da noite ou do misticismo, são ainda relacionadas a maus agouros.
Muitas línguas não têm essa oposição e associam as distintas
imagens à mesma palavra, mas já que a nossa possui essa diferença, permite
jogos de associação. Isso significa que eu podia ter escrito “A mariposa
flutuava no turbilhão da noite”, mas, na minha visão, essa opção não atingiria,
assim, isoladamente, uma potência poética tão instigante. Entretanto, dentro de
um contexto propício essa frase pode ganhar dimensões maiores e mais profundas.
Ao escolher “borboleta” e não “mariposa”, optei propositalmente pelo improvável.
Uma borboleta voando à noite é mais potente, enquanto imagem poética isolada,
do que uma borboleta voando de dia.
Poderia tranquilamente ser a opção contraria também e a frase
não perderia o impacto. Percebam: “A mariposa flutuava no turbilhão da tarde”. A
imagem continua fugindo do senso habitual, embora o sentido mude razoavelmente,
por conta das outras palavras que constituem a frase.
A palavra “flutuava” remete, no senso habitual, ao ato
permanecer sobre a água ou suspenso no ar, sem afundar ou cair, geralmente associado a
um estado de inércia, trazendo uma imagem de algo aparentemente leve. Levando
em consideração a imagem da borboleta/mariposa, flutuar ganha uma conotação de voar com calma
ou se entregar. O contexto geral da frase isolada acaba por sugerir mais a
ideia de calma por causa da palavra "noite"/"tarde", que, em senso comum, remetem a
descanso e ao fim de um período temporal, se diferenciando pela presença de luz
solar e pelas atividades sociais realizadas nesses horários. A palavra "turbilhão" se refere ao movimento
rápido de circulação de um líquido ou de gás, um redemoinho, enfim, algo um
tanto quanto intranquilo, descontrolado, impróprio, portanto, para uma criatura
tão leve e frágil fazer uma coisa aparentemente calma como flutuar, vocês
concordam?
Pois bem, essa sucessão de imagens relativamente comuns cria
uma atmosfera lúdica na mente do leitor, que pode ter diversas interpretações
baseadas em suas experiências de vida, em seus conhecimentos, em suas emoções e
sua espiritualidade. Tendo a interpretá-la como metáfora de uma grande ideia extraída de um pesadelo ou alguém ingênuo perdido e chamando atenção em um ambiente inóspito ou misterioso, outras pessoas teriam outras leituras. Tamanha pluralidade de variáveis que surtem influência na
interpretação é o que deve estimular o artista da palavra a buscar a própria
maneira de se expressar, pois quanto mais íntima for a compreensão das palavras
e as razões para a escolha dos termos usados, mais naturalmente flui a
correnteza de sentidos que leva a mensagem desejada aos outros. Isso acontece
porque dentro de uma organização que nos seja relativamente natural,
sentimo-nos livres para usar amplamente a Potência Poética.
Por exemplo, eu usei a frase “A borboleta flutuava no
turbilhão da noite” para explicar parte da teoria sobre potência poética porque
sinto-me confortável em causar esse choque de expectativa através oposição de
sentido. No entanto, esse não é a única forma possível de fazer a palavra
ganhar valor. Observem alguns versos de Viviane Mosé cunha na poesia intitulada "Prosa Patética":
"Me disseram que solidão é sina e é pra sempre.
Confesso que gosto do espaço que é ser sozinho.
Essa extensão, largura, páramo, planura, planície, região."
Confesso que gosto do espaço que é ser sozinho.
Essa extensão, largura, páramo, planura, planície, região."
Para quem quiser ler a poesia na integra clique AQUI. Garanto que usarei muito este texto e outros da autora, pois admiro muito o trabalho dela.
Porém, o que nos interessa agora é apenas demonstrar que nem todo texto artisticamente potente precisa necessariamente se basear em oposição de sentido. Nestes três versos, a potência poética é decorrente da sobreposição de imagens com sentidos similares, não exatamente palavras substituíveis entre si, mas semanticamente muito próximas de modo a criar uma ambientação ilustrativa. Reparem na sequência: Solidão, Sina (destino), Espaço, Extensão, Largura, Páramo (planalto isolado nas montanhas andinas), Planície, Região.
Percebem? Todas as palavras remetem a um lugar espaçoso e aberto, onde se tem a sensação de liberdade e tranquilidade que é justamente a sensação agradável e incômoda da solidão.
Para quem quiser se exercitar um pouco, a minha sugestão é criar dois textos curtos utilizando, em um a lógica da oposição de sentidos, no outro, a sobreposição de sentidos. Não misturem os dois em um texto só, porque o objetivo, por ora, é experimentar o que flui mais naturalmente.
Deixo exemplos de como grandes poetas da nossa história utilizaram a oposição e a sobreposição de sentidos, aproveitem a leitura!
Deixo exemplos de como grandes poetas da nossa história utilizaram a oposição e a sobreposição de sentidos, aproveitem a leitura!
Texto de apoio ao exercício de oposição.
"AS FACAS PERNAMBUCANAS
O Brasil, qualquer Brasil,
quando fala do Nordeste,
fala da peixeira, chave
de sua sede e de sua febre.
Mas não só praia é o Nordeste,
ou o Litoral da peixeira:
também é o Sertão, o Agreste
sem rios, sem peixes, pesca.
No Agreste e Sertão, a faca
não é a peixeira: lá,
se ignora até a carne peixe,
doce e sensual de cortar.
Não dá peixes que a peixeira,
docemente corta em postas:
cavalas, perna-de-moça,
carapebas, serras, ciobas.
Lá no Agreste e no Sertão
é outra a faca que se usa:
é menos que de cortar,
é uma faca que perfura.
O couro, a carne-de-sol,
não falam língua de cais:
de cegar qualquer peixeira
a sola em couro é capaz.
Esse punhal do Pajeú,
faca-de-ponta só ponta,
nada possui da peixeira:
ela é esguia e lacônica.
Se a peixeira corta e conta,
o punhal do Pajeú, reto,
quase mais bala que faca,
fala em objeto direto."
- João Cabral de Melo Neto
O Brasil, qualquer Brasil,
quando fala do Nordeste,
fala da peixeira, chave
de sua sede e de sua febre.
Mas não só praia é o Nordeste,
ou o Litoral da peixeira:
também é o Sertão, o Agreste
sem rios, sem peixes, pesca.
No Agreste e Sertão, a faca
não é a peixeira: lá,
se ignora até a carne peixe,
doce e sensual de cortar.
Não dá peixes que a peixeira,
docemente corta em postas:
cavalas, perna-de-moça,
carapebas, serras, ciobas.
Lá no Agreste e no Sertão
é outra a faca que se usa:
é menos que de cortar,
é uma faca que perfura.
O couro, a carne-de-sol,
não falam língua de cais:
de cegar qualquer peixeira
a sola em couro é capaz.
Esse punhal do Pajeú,
faca-de-ponta só ponta,
nada possui da peixeira:
ela é esguia e lacônica.
Se a peixeira corta e conta,
o punhal do Pajeú, reto,
quase mais bala que faca,
fala em objeto direto."
- João Cabral de Melo Neto
Texto de apoio ao exercício de sobreposição.
"EU, ETIQUETA
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comparo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam
e cada gesto, cada olhar
cada vinco da roupa
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrine me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente."
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comparo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam
e cada gesto, cada olhar
cada vinco da roupa
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrine me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente."
- Carlos Drummond de Andrade
Convido quem se sentir a vontade, é claro, a partilhar suas
descobertas e textos conosco no grupo de debates do facebook Oficina “Sentido
Literário”. Podem também comentar lá as reflexões que postarei aqui.
Reitero ainda a minha disposição para conversar via facebook
Edgar Izarelli de Oliveira ou pelo e-mail: edelua.artes@gmail.com
Gratidão pela atenção! Desejo a todos grandes inspirações e
uma ótima semana!