segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sobre a evolução da performance “O Brilho de uma Alma”

De vez em quando, é interessante parar pra pensar no processo que leva ao aprimoramento de um objeto artístico. O processo da performance ainda aberta é um dos mais interessantes. Usarei como exemplo, o nosso recente trabalho: “O Brilho de uma Alma”.

Abaixo, trecho da performance. registrado por Saulo César Paulino Silva no lançamento de seu livro:  "Olhares sobre a inclusão"



A performance teve o início de sua concepção no mais puro ócio criativo. Havia acabado a luz em minha casa e, por já ser noite cerrada, estava escuro. Minha família já estava dormindo, mas minha mente ainda estava ativa demais pra cair no sono. Peguei então a lanterna e me pus a recitar o poema “José” de Carlos Drumond de Andrade. No início era pra passar o tempo, mas logo percebi que, existindo um público, eu poderia  estabelecer uma relação entre o texto e foco de iluminação da lanterna. Isso aumentaria a potência imagética do texto, uma vez que o foco de luz estabeleceria uma comunicação direta com um espectador especifico, funcionando como um apelo de atenção individual e, ao mesmo tempo, ampliando a atenção dos demais expectadores às informações auditivas que estão sendo enviadas.

Foco de luz na mão do ator é um recurso ainda pouco utilizado e que garante uma incrível gama de possibilidades artísticas.

Usei exatamente este texto e este recurso de iluminação numa performance no Sarau da Cia. de artes Balú, em Carapicuíba, no dia 27/9.

Com o resultado satisfatório do recurso, decidi empregá-lo a um texto de autoria própria que pudesse criar um diálogo ainda mais íntimo e questionador com o público. O texto escolhido foi “Olha pra Gente”; texto escrito em 2012 que, na minha visão, trabalha com múltiplos aspectos da vida e opõe a lógica do sistema a uma maneira mais humana e mais espiritual de se experimentar as coisas que constituem nosso cotidiano. Esse texto busca, em linhas gerais, desfazer a mecanização dos atos e das palavras.

Neste mesmo período (era Setembro do ano vigente), havia escrito um texto, o “Escafandro em Curto Circuito”, onde ocorre uma intensa reflexão interna sobre o convívio pessoal e social com as limitações físicas que possuo.

Abaixo, um trechinho da apresentação do referido texto no Sarau da Educação e Cultura. Registrado por Eduardo Rangel.



Aconteceu de coincidir com a descoberta do recurso e a elaboração do texto supracitado a minha contratação pra finalizar uma palestra sobre altas habilidades na Diretoria Regional de Educação de Campo Limpo, por parte de Marcos Rodrigo da Rosa, meu ex-professor de língua espanhola, nos tempos de Colégio de Vanguarda, que hoje trabalha na DRE. Tinha 20 minutos pra fazer a performance no evento, que ocorrera no dia 9/10, e a vontade de fazer algo inovador, surpreendente, provocativo e, ao mesmo tempo, reflexivo e desafiador pra mim mesmo. Algo que desconstruísse paradigmas, fosse socialmente útil e artisticamente inexplorado. Além disto, queria algo que incomodasse o público.

Resolvi, então, que o primeiro passo seria realizar todas as características acima dentro de mim. Após um estudo apurado das minhas apresentações anteriores, descobri que apenas um tema do meu acervo ainda permanecia enterrado no arquivo dos tabus não trabalhados. Era hora de abrir a minha intimidade e falar de questões referentes à paralisia cerebral.     

Juntei, então, os dois textos somados ao recurso da lanterna, sendo que empreguei-o de maneiras diferentes entre os textos. No primeiro texto, “Olha pra Gente”, utilizei a luz como descrito acima, isto é, pra estabelecer um contato; já pro segundo texto, “Escafandro em Curto Circuito”, utilizei a lanterna como iluminação de cena, claro, com o significado abstrato de ser o brilho fraco e constante de uma alma limitada.

           Faltava o arremate de cena. O arrebatamento. O último choque. Optei por “A Caixinha Mágica”, um texto já firmado em minha mente e que mostra, metaforicamente, toda a liberdade obtida ao se entrar em contato com a essência artística do ser humano. Além da segurança de já ter feito o texto milhares de vezes, achei que ele encerraria a performance de um modo sutil e emocionante. Pra minha surpresa, só vim a descobrir a real dimensão d“A Caixinha Mágica” quando a integrei nessa performance.

A poesia, inicialmente escrita pra traduzir o sentimento de saudade de um tempo passado que pode ser alcançado através da arte, em 2011, finalmente revelara sua face adulta, onde denota conotativamente os sentimentos de ânsia por fazer aquilo que o corpo não permite. A poesia ainda remete a um desejo de conciliação entre a alma (essência capaz de desejar) e o corpo (matéria capaz de concretizar desejos). Em outras palavras, a poesia da voz à alma, opondo-se ao texto anterior, “Escafandro em Curto Circuito”, que dá voz ao corpo, mostrando as dificuldades pra expressar tudo o que a alma deseja.    

E com essa seleção, apresentei, com sucesso, a 1ª versão!

No entanto, me senti descontente com o final, faltava alguma coisa. Eu queria algo mais provocativo e chocante artisticamente e lembrei-me de incluir uma reflexão sobre o que os aplausos significam pros artistas.

Aplausos instantâneos me incomodam muito, pois considero que a verdadeira força da arte só pode ser realmente sentida quando se consegue causar alguns instantes de silêncio. Por isso, inclui ao final da performance o texto “Sobre as Palmas que Vocês NÃO Vão me Dar”. A ideia inicial da interpretação era reflexiva, porém, com o processo de exploração cênica, percebi que o tom de indignação, asco e até raiva pelas palmas recebidas se encaixa melhor ao texto e causa mais impacto ao público. Este texto fecha a performance de maneira mais incisiva e mais questionadora.

Ainda é cedo pra falar convictamente, mas creio que, considerando a ligação sutil e surpreendente entre os quatro, estes textos formaram o esqueleto textual dessa performance. Outros textos que venham a ser acrescidos a esta seleção, virão no sentido de evidenciar a ligação entre eles, creio eu; bem como mudanças de ordem cênica, por exemplo, no tom, na representação física ou mesmo na sequência textual virão na tentativa de acentuar os sentimentos que queremos transmitir.

Apresentei mais duas vezes, já com os quatro textos, uma na escola M’boi I, a pedido de uma das supervisoras que me assistiu apresentar a 1ª versão, e outra na Casa Amarela, num evento cultural, ainda em formato monólogo. Ambas as apresentações foram muito bem aceitas pelo público, mas eu ainda não estava nada satisfeito com o plano da expressão física da cena. Me sentia preso, o que, de certa forma, combina com a ideia geral da performance, mas eu sentia que ela poderia atingir mais e melhor o objetivo planejado se tivesse uma expressão corporal mais rica e mais diversificada. Pensei que precisava de direção pra aperfeiçoar esta camada, no entanto e pra meu total espanto, a Lua quis entrar na cena.

Foi no Sarau da Kambinda, totalmente a improviso, que a Lua veio contracenar comigo nessa performance pela primeira vez e, como todo nosso trabalho cênico, desde o Grupo Artístico Co-Mídia Dell’Arte, foi sempre no sentido de representar partes de uma mesma pessoa, caminhamos por esse caminho instintivamente. Graças à nossa sintonia apurada, a cena foi brilhante mesmo não tendo qualquer suporte de ensaio ou combinações prévias. Esse sarau, especificamente,  nos dá a possibilidade de experimentar de maneira muito natural, pois tem um clima muito familiar de intimidade e acolhimento!

            Após esse improviso, percebemos que a cena só tinha a ganhar com a presença da Lua, mas os ensaios se tornavam imprescindíveis, uma vez que precisaríamos descobrir as potencialidades cênicas que poderíamos explorar. Feita a divisão do texto e trabalhando tom de voz e expressão corporal, foi se afirmando cada vez mais claramente para nós que nossos papéis seriam novamente partes propositalmente separadas em cena pra que se torne visível a complexidade existencial de uma só integridade.
           
Dessa forma, Lua representa a alma, o universo íntimo, o brilho interior, a pureza das emoções e das ideias; cabendo a mim, portanto, a manifestação do corpo, contido pelas limitações físicas evidentes e pelo convívio em sociedade. O tom irônico que é empregado por Lua e contrasta perfeitamente o tom quase sempre sereno que eu utilizo, é, acima de tudo, uma demarcação de como a alma interpreta o que o corpo recebe, experimenta e transmite.
           
Este maravilhoso processo ainda está sendo explorado, creio que ainda não atingimos nem sequer a metade do que é possível em termos artísticos. Mesmo assim já caiu no agrado de muitas pessoas, pois já foi apresentado no Lançamento do livro “Olhares sobre a inclusão”, organizado por Saulo César Paulino Silva, e novamente na DRE Campo Limpo pra professores de salas de apoio à inclusão, além, é claro de estarmos apresentando um pequeno trecho dela em saraus. Trabalharemos muito nesta performance ainda, mas estas linhas gerais tendem a ser mantidas.

Abaixo, trecho de "Olha pra Gente", gravado por Takumi Matos, no Sarau Suburbano Convicto.


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Galera, temos dois avisos para dar:

  1. Dentro de alguns dias, será publicada uma entrevista conosco no Blog Ler, Analisar e Entender, do nosso querido Hilton Luz, autor de “Viver – Crônicas de Vida”. Neste blog, ele divulga muitos artistas, através de entrevistas inteligentes e muito bem trabalhadas. Vale a pena conferir o trabalho e, claro, a nossa entrevista.  
  2. A EdLua.Artes fará um breve recesso para o natal. Do dia 23 ao dia 28 desse mês, nós estaremos em férias. Então, desejamos a todos os nossos leitores e simpatizantes um Happy Yule e que seja repleto de boas energias, muitas partilhas e momentos de paz e reflexão!

Abraços da noite e beijos de prata!

Ed&Lua

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